CAPÍTULO II (parte II)


     Nesse momento, um murmúrio baixo e indecifrável surgiu, rompendo a apatia do Conselho. E logo o rumor foi tornando-se num coro entoado por línguas diferentes, mas perfeitamente compreensíveis. O povo se encontrava do lado de fora da câmara principal do Conselho Superior e colaborava pela última prece; cada um do seu jeito, com seu idioma, que, num feito único, parecia combinar-se por todos.

§§§

     Quando o povo runário finalmente abrandou suas lamentações, um dos nobres castos da raça dos xunguizins com cerca de 420 luas, 32 anos runários, aproximou-se da Cadeira Sagrada e entregou o Livro das Assinaturas do Conselho Superior à Rainha Viúva.

     - Antes de iniciarmos a sessão de assinaturas do decreto oficial, desejo, como representante legal da minha raça, e também do Conselho Superior de Runária, manifestar meu posicionamento quanto à ocupação do trono.

     A rainha Estella, notoriamente abalada por ter que dizer tais palavras ainda diante do corpo morto do rei e esposo, respirou profundo, levantou os olhos vazios e inchados por muito chorar à direção da sub-bancada Superior, composta pelos anciões nobres do palácio, os castos, e se pôs a falar:

     - Nobres, reis, rainhas, príncipes e princesas. Povo de Runária, todos vós bem sabeis que já não sou uma jovem com vigor suficiente para governar em lugar de nosso senhor, o Rei Superior Hustin, escolhido por sua bravura e destinado a ocupar o Trono Sagrado por 130 luas, dez anos runários. Por lei, torno-me sucessora do meu nobre esposo, mas temo que, assim como ele, venha a deixá-los órfãos em muito pouco tempo.

     Ouviu-se um confuso e crescente murmúrio que corria de fora para dentro da sala do Conselho Superior. Outra vez, a Rainha Stella respirou fundo, como se tentasse sustentar seu fôlego apenas pelo tempo de um breve discurso, e voltou a encarar os nobres castos da sub-bancada.

     - Silêncio na sessão! - reclamou Athlas, Ancião Superior dos castos, e todos, à uma, calaram-se. - Que prossiga a Rainha Estella.

     - Obrigada, nobre Athlas. - ela tomou um novo gole de ar e, com os olhos marejados, voltou à palavra: - Sobre minha raça, governarei até que parta desta vida ao encontro do Rei Hustin; mas, sobre Runária, pelas próximas 38 luas, tempo que resta sobre o Trono Sagrado ao governo dos humanos, não poderei reinar.

     O povo levantou suas vozes, formando um verdadeiro alvoroço e fazendo os olhos do ordeiro Athlas saltarem na direção do ancião representante dos membros do Conselho Inferior, que gritou aos seus subchefes e todos no recinto e em redor da sala foram controlados.

     - Segundo a lei da hierarquia da nossa raça, após minha morte, o trono dos humanos ficará sob o governo do príncipe herdeiro, o filho primogênito do Rei Hustin, Elbron.

     A rainha fez uma pausa, parecendo-lhe o sentido embaralhar por uma repentina tontura. Óiaaeu, o casto xunguizin que havia lhe entregado o Livro das Assinaturas do Conselho Superior, retornou para dar-lhe uma taça de prata cheia d’água. Estella tomou um pouco do líquido, mas não se deteve por muito tempo, agradeceu ao nobre com um sorriso forçado e continuou:

     - Sem mais prolongamentos, solicito ao nobre Athlas que presida em meu lugar a sessão de escolha do novo Rei Superior de Runária - mais uma vez, formou-se um crescente burburinho. Contudo, a Rainha Viúva não se intimidou. - Eu, a Rainha Estella, esposa e sucessora do Rei Hustin, manifesto diante dos Conselhos Superior e Inferior, diante dos nobres castos e de todo povo aqui presente, que o governo da raça humana, devido à desgraça que alcançou sua casa, renuncia agora o direito de prosseguir assentado sobre o Trono Superior de Runária.

     Após o tumultuado murmúrio pela chocante revelação, o silêncio estabeleceu-se sobre todos naquela sala. Com a ajuda de Athlas, a Rainha Estella assinou o decreto e retirou-se amparada pelo nobre casto xunguizin que desde o início a ajudara. Enquanto a rainha humana caminhava quase cambaleante às recâmaras do Palácio Superior, era acompanhada pelo sombrio olhar do príncipe herdeiro, seu próprio filho, o terrível Elbron.

  §§§

     Os castos, serventes leais do Palácio Superior e portadores da Runa da Integridade, diferente dos demais povos de Runária, não eram uma raça. Por decreto de Séden, o antigo grande profeta que vivera 12.978 luas, mais de 995 anos runários, todo décimo segundo primogênito de cada raça sobre a face do reino deveria ser separado e consagrado ao serviço mais nobre de toda a nação: os cuidados do Palácio Superior, bem como de seus representantes, os membros do Conselho Superior. Athlas, atual ancião casto, era filho da casa de Mileani, rainha dos Dismeons, e tinha, junto a seus onze príncipes, filhos de raças diferentes, pois o número doze fora instituído por Séden como símbolo da perfeição runarial, presidia as ordens organizacionais do Palácio e possuía o direito de julgar a integridade das ações do Conselho Superior. Caso houvesse divergências nas reuniões do Conselho, o ancião Superior dos castos decidiria a questão com seu voto de Minerva.

     - Demos continuação à solene escolha do nosso novo Representante Superior - disse o nobre Athlas. - Enquanto é passado o Livro das Assinaturas aos membros do Conselho Superior, rogo-vos que se apresentem diante da tribuna, todos os candidatos reais à Cadeira Sagrada de Runária.

     Elbron, o temerário, levantou-se e, sob o olhar reprovador dos demais ocupantes da sala, denotando desprezo pelo ato de sua rainha e mãe, foi o primeiro a se posicionar na marca dos candidatos ao Trono Superior. À medida que assinava o decreto, cada rei, rainha, príncipe ou princesa das mais diversas raças - Humanos, Elfos, Ninfas, Feiticeiros, Anões, Xunguizins, Trasgos, Gigantes, Bardos, Dismeons e Habacuques, incríveis seres diplomáticos, de aparência humana, mas com um enorme par de asas retráteis nas costas, bem como o ancião representante do Conselho Inferior, que era líder de raças ermas ou menores -, totalizando o número da perfeição runarial, doze, iam achegando-se à frente da tribuna.

     - Povo de Runária - clamou o nobre casto Athlas -, eis aqui, diante de vós, os doze membros legais do Conselho Superior: dos Humanos, o príncipe Elbron; dos Elfos, o rei Aminradh; das Ninfas, a rainha Janass; dos Feiticeiros, a princesa Assinevrad; dos Anões, o rei Aitube; dos Xunguizins, o rei Ieuiá; dos Trasgos, o príncipe Zaduck; dos Gigantes, o rei Oromedon; dos Bardos, o rei Amadeus; dos Habacuques, o rei Eleakim; dos Dismeons, a rainha Mileani; do Conselho Inferior, o ancião e rei Xinrode.

     Os representantes reais do Conselho Superior e candidatos ao Trono Sagrado posicionaram-se, conforme as leis de Runária, para ouvir as regras da eleição.

     - Segundo o Livro da Integridade do Reino de Runária, é terminantemente proibido que um candidato ao Trono Superior vote em si - recitava Athlas. - Assim, cada membro deverá votar em um único representante de raça diferente e depois lacrar o voto com o selo de seu próprio Brasão. Que fique registrado o início da votação secreta. 


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Autor: Isie Fernandes.
Adaptação:
Revisão: (aguardando)
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CAPÍTULO II (Parte I)


     Ao som das Ninfas possuidoras da Runa Voz, que entoavam o mais triste e belo cântico de melancolia, sem dizer uma só palavra, todos os membros do Conselho puseram-se a caminhar em direção à Rainha Viúva: Homens, Elfos, Ninfas, Feiticeiras, Castos, Anões, Xunguizins, Trasgos, Gigantes, Bardos e tantas outras raças representadas no Conselho por seu maior guerreiro, escolhido pelas características peculiares que lhes davam o direito de ser admirados e respeitados por todos.

     A viúva Estella sentou-se na poltrona que, em outra ocasião, esteve ocupada por seu fiel e puro marido, como era denominado o companheiro na língua humana. Seus olhos vermelhos e vazios aguardavam a chegada de todos os guerreiros, inclusive, de seu próprio filho, Elbron, chamado de temerário entre seus companheiros de mesa. Aquele que, talvez, fosse o único não-merecedor de compor o Conselho, mas, ainda assim, estaria ali dentro de instantes, para tentar assumir a posição de novo Rei Superior, e isso amargurava ainda mais o coração da viúva.

     O homem Elbron foi o último a subir, observado por todos, como era de se esperar. O filho do Rei Superior estava chegando. Perdeu o pai e ganhou o reinado. Herdaria ou não o pesado fardo de responder por todos no Mundo das Runas? Seria responsável o suficiente, como fora seu pai e seu avô? Teria coragem, sabedoria e humildade para entender que cada runa componente da mesa deveria ser respeitada, bem como a opinião de cada membro do conselho?

     - Filho do Rei Hustin - disse o Bardo Amadeus –, sente-se, para que seja possível iniciarmos.

     - Hei de me sentar sim, Amadeus, depois de falar a sós com minha amada mãe.

     - Não sejas tolo – disse, tênue, a Ninfa Janass. – Todos nós sabemos do que devemos tratar neste momento.

     - Elbron, filho de Hustin – tomou a palavra o Gigante Oromedon; ao ouvir sua voz, os céus responderam com nuvens e ventania. – Devemos começar o quanto antes. Temos muitos temas importantes a tratar.

     - Mas que diabos temos que tratar, que não pode esperar um quarto de badalada?

     Tal badalada que havia mencionado era uma das muitas criações dos feiticeiros. De alguma forma, eles conseguiam medir o tempo e, junto aos gnomos, fizeram o que se podia chamar de Ónis Gnomon, que nada mais era do que um objeto que projetava a sombra no relógio de Sol.

     - Fale, filho – pronunciou, pela primeira vez, a viúva do Rei Hustin.

     - Mãe, é crucial que estejamos sozinhos.

     - Maldito seja... – disse o elfo, interrompido pelo Casto, que o reprovou com um simples olhar.

     Não fazia parte do procedimento Runário que companheiros da mesa do Conselho Superior tivessem desavenças. Todos eram, em sua maioria, justos. Os que não possuíam o dom da justiça eram dotados do silêncio, da humildade ou do respeito mútuo, graça às runas, que compunham – todas juntas – o conselho Runário. Elas, portanto, cediam aos componentes da mesa grande parcela de seus poderes, para que as escolhas importantes pudessem ser feitas com seriedade. Mas a situação mudara. O Rei Superior estava morto e a decisão mais importante seria tomada sem nenhuma intervenção das runas. Os componentes deveriam escolher o sucessor conscientes de que seu caráter estava à mostra.

     A branca viúva vestida de preto levantou-se com certa relutância. O Homem Elbron esticou-se para assegurar sua estabilidade e acompanhou-a até o Jardim de Efeso, o mais belo de toda Runária.

     - Meus pêsames – disse Elbron. – Sei que está difícil para a senhora. Eu queria poder lhe dar um abraço em sinônimo de compaixão.

     - Poupe-me de sua falsidade, meu filho. Quem deveria parecer um pouco mais triste era você, pela perda de seu pai. Mas, ao menos, consegue disfarçar o quanto está satisfeito.

     - Ele nunca foi o pai que eu precisei! – virou as costas à mãe, a provar mais uma de suas atitudes sem nenhum princípio edificante.

     - Você também jamais foi o filho que ele mereceu. Audacioso, nunca soube fazer-se guerreiro de verdade – ela tocou o ombro do homem. - Olhe nos meus olhos enquanto falo contigo, meu filho. Vai dizer que não mereço o seu respeito? Você deseja que eu vote pelo seu direito de sucessão ao trono Superior de Runária? Não acredita mesmo que possa merecê-lo, acredita?

     Os olhos amargos de Elbron caíram ao chão. Ele sabia que não merecia, mas desejava-o como jamais imaginou desejar. Queria possuir o reino mais do que queria possuir as runas da força, da paixão e do poder, juntas. Sua família jamais conseguiu possuir alguma delas, tinha apenas a runa da mente. Mas isso não era justo, ao menos, não a Elbron, tão ganancioso por poder, que parecia não pertencer àquela raça. Não valia a pena ter uma runa que o forçava a pensar, se as feiticeiras já possuíam a esperteza, os gigantes, a força, e os Castos, a integridade. Eles não tinham que buscar o conhecimento para serem diferentes, eles tinham o poder nas mãos; era aprender a usá-los ou nascer com o dom.

     - Eu não sou o que você pensa – disse Elbron -, eu posso ser justo e íntegro, se quiser. Posso ser forte e fazer as pessoas me amarem. Não preciso de runas ou de reino.

     - Então, filho de Hustin, prove isso ao Conselho. Se queres cativar alguma coisa, senão a repulsa, prove agora.

     Estella, filha da Ninfa Cleodora, esboçou um sorriso amargo e caminhou suavemente pelo Jardim de Efeso, levando consigo algumas folhas secas, que se enterneciam pela morte do Rei, mais verdadeiramente que o próprio filho, que deixava para trás.

    §§§

     O Conselho Superior pôs-se de pé em frente à mesa redonda, que era composta pelas runas de suas raças, quando viu que a Rainha Estella se aproximava. Era hora de começar a reunião, de escolher quem seria o próximo Rei a se assentar sobre a Cadeira Sagrada, o qual deveria compor, pessoalmente e sem influência da runas, a maioria das qualidades que elas poderiam dar ou, ao menos, as mais decisivas delas: Justiça, Humildade e Sabedoria.

     - Conselho Superior, Conselho Inferior, nobres castos e cidadãos de Runária – disse a Rainha -, demos por iniciada a reunião do Conselho Principal que será responsável pelo futuro da Cadeira Sagrada, sobre a qual, em respeito ao último desejo do Rei, me assento humildemente, bem como pelo futuro de nosso querido planeta.

     Nesse momento, um murmúrio baixo e indecifrável surgiu, rompendo a apatia do Conselho. E logo o rumor foi tornando-se num coro entoado por línguas diferentes, mas perfeitamente compreensíveis. O povo se encontrava do lado de fora da câmara principal do Conselho Superior e colaborava pela última prece; cada um do seu jeito, com seu idioma, que, num feito único, parecia combinar-se por todos.

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Autor: Gisela Santanna.
Adaptação:
Revisão: Isie Fernandes. 
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CAPÍTULO I


     O Sol punha-se devagar por detrás das colinas do pequeno reino dos Feiticeiros, como se hesitasse em partir. Aborrecida, a princesa Sinevra protestava.

     - Mas por quê? – teimou, fitando os olhos decididos e teimosos do pai – Por que eu? Eu não tenho um lugar no Conselho, tu tens. Não me vão querer ver lá. E eu não quero ir.

     O rei Quimodo suspirou, fazendo tremer a barba grisalha com impaciência.

     - Assinevrad… - murmurou, passando a mão pelo rosto dela. A filha afastou-a.

     - É Sinevra – sibilou, virando-lhe as costas.

     - Sabes, foi prometido que na altura em que completasses trezentas luas tomarias o meu lugar no Conselho como representante dos feiticeiros e da Runa da Esperteza – Sinevra bufou e virou-lhe as costas, mas Quimodo elevou a voz: – Nós precisamos de ti, Sinevra! Foi prometido!

     - E de que é que serve ser Rei se não se podes quebrar as regras? Tens poder para isso, aliás, sabes que não estou pronta para participar no Conselho.

     - Está na altura de começares a mudar a imagem que fazem de ti… – resmungou Quimodo. A filha elevou a voz, furiosa:

     - Oh, sim, novamente o mesmo assunto - e andou de um lado ao outro, como fazia o próprio pai ao reclamar-lhe. - Comporta-te, estuda, sê inteligente, sê como os teus pais… Não quero ser como vocês! Sabes o que quer dizer esperteza? E sabes que não quer dizer o mesmo que sabedoria? Pois, adivinha, a nossa runa confere-nos esperteza, agilidade de mente. Não o poder de decorar feitiços e datas! Que se dane a história, nós podemos criar história! Sabes o que é que é sentir que tenho de ser como os meus pais?

     - E sabes o que é que é ouvir a toda a hora que a minha filha é… Uma meretriz!?

     - E o que é que interessa? Porque é que não fazes orelhas mocas?!

     - É a grande meretriz aqui, a grande meretriz ali… Até eu acredito!

     Sinevra abriu a boca em protesto, mas faltou-lhe o ar. Ele chamara-lhe o quê?

     - O atual rei morreu. Vais à reunião e pronto. Já está na altura de assumires alguma responsabilidade.

     Quimodo virou-lhe as costas, com as mãos a tremer num reflexo de raiva habitual. Mas nada tremia mais do que Sinevra, furiosa, ofendida e abandonada.

§§§

     Com um salto perigoso, Sinevra sentiu-se atirada de encontro aos painéis de madeira da carruagem. Torcia ligeiramente as mãos porque, agora que deixara o pai para trás, sabia que nada a podia salvar. E o que é que ela podia fazer? Era um funeral, e ela nunca comparecera em nenhum. Diziam-na demasiado alegre para um funeral. E, agora, teria de ir a um grande e importante, com cuidados redobrados para não ofender ninguém. Ia lá estar Estella, a Rainha humana, a presidir as cerimônias, apenas atrás do Grande Sacerdote.

     - Dizem que ele tem os olhos leitosos como os de um morto… - sussurrou Ymèrria, dama de companhia da princesa, a sua pele escura esbranquiçada pelo medo.

     - É cego? – alguma coisa neste aspecto a tranquilizava. Pelo menos, o último dos Grandes Sacerdotes de Runária, com o inegável dom da visão, não a podia ver. Apenas ao futuro, e o futuro não a atormentava tanto como o presente.

     Ymèrria acenou solenemente, como se toda a questão fosse demasiado importante para estar ao seu alcance.

     - Isso não é um pouco… Usado? – a pergunta acerca do vestido da princesa escapou-lhe dos lábios sem intenção. Mèrr fitou-a de olhos arregalados.

     - Bem… Sim, talvez… Eu acho que sim – sussurrou a voz a desaparecer-lhe na garganta. Até Sinevra sabia que tinha ido longe demais. Portanto, manteve-se calada, pensando e repensando a sua entrada e a sua postura. Teria de conter comentários impróprios, sufocar gargalhadas e olhar em frente, para o caixão do acabado, para o próprio rosto do morto. Nada de fixar os estranhos, nada de sorrir a caras novas. Teria de estar séria, infeliz, e, se conseguisse, a chorar. Levemente, como se lamentasse por Runária – porque, afinal de contas, ela não conhecia o homem. E teria de se lembrar solenemente de não dizer isto a ninguém.

§§§

     Era noite cerrada quando chegaram ao Palácio Superior onde o antigo Rei Superior tinha morrido. Sinevra nunca entrara no Reino dominado pelos Homens, e admirou a sua decoração sombria e imponente. Parecia afirmar claramente que os seus súditos tinham de ter respeito ou morreriam – só um povo tão indisciplinado para precisar de um aviso como aquele castelo largo, a pedra negra a conferir-lhe um tom ameaçador.

     Quando penetraram as portas, Sinevra pôde, pela última vez enquanto ali estivesse, olhar em volta com curiosidade. As sebes tinham sido aparadas e tudo estava coberto de veludo preto, a cor de luto dos homens. A repousar no seu caixão de cristal, estava o Antigo Rei Supremo, um leve sorriso de batalha nos lábios, selvagem e mortífero. Em volta da mesa de pedra, havia um grande círculo de fogo, que impedia qualquer mal de entrar no morto e de corrompê-lo. Puro e justo até ao fim, diziam as inscrições na base da mesa.

     Sinevra foi recebida com pompa no salão, onde aqueles que já tinham chegado comiam. Não havia sinais da Rainha Viúva.

     - Princesa Assinevrad, representante dos Feiticeiros – anunciou o arauto. Todos os rostos se voltaram para contemplá-la, alguns até hostis, cheios de despeito. Quem escolhera aquela rapariga para comparecer ao funeral?

     Criada na rigidez e na astúcia, Sinevra ergueu a cabeça e caminhou até ao seu lugar, sentando-se em silêncio e servindo-se. Quando todos os olhares se desviaram dela, debicou a comida e saiu nervosa.

     Era já no dia seguinte. A prova mais difícil por que tinha passado – e os implacáveis juízes eram, infelizmente, toda Runária.

§§§

     - O conselho é à tarde – papagueava Mèrr. Sinevra não conseguia calá-la. – E, portanto, pensei em verde. Afinal, é melhor do que preto para um conselho, e é a cor do luto.

     - Não aqui – frisou a princesa, frustrada, afastando o cetim cor de jade. – Aqui, é preto. E preto será.

     Mèrr fitou o vestido preto, enjoada, mas Sinevra não cedeu. Afinal, o que queria aquela tontinha que ela fizesse? Ofendesse toda a Runária e arruinasse a sua reputação, já bastante má, por um capricho? Seria, sem dúvida, algo de Sinevra – mas não desta vez. Queriam-na dura, séria e infeliz? Pois ela seria ainda mais dura, ainda mais séria e ainda mais infeliz.

     No pátio da frente, a Rainha Viúva, acompanhada pelo Grande Sacerdote, de olhos baços, olhava para todos eles com um sorriso leve, muito triste. Sinevra quase que sentiu pena dela. Todas as criaturas reuniam-se em volta do circulo de fogo, mesmo aqueles que não estavam representados no Conselho, e o povo estava atrás, afastado, uma mancha negra contra o negro.

     Tomando o seu lugar, Sinevra fitou o rosto do morto. Via facilmente que estava morto, não só por estar num caixão – e anunciadamente morto –, mas devido ao seu aspecto macilento e cansado, que nenhum Rei Supremo alguma vez poderia ter em vida. Alguém lhe deu uma cotovelada nas costas.

     - Olhos lá em cima – murmurou um elfo de orelhas bicudas. Sorriu levemente, encoberto pela cortina negra dos cabelos da princesa.

     - Mas eu pensei… - sussurrou ela, confusa.

     - Costumes humanos – esclareceu o elfo. Fez um aceno hirto. Não podia teimar nos seus costumes. Olhos no Grande Sacerdote, certo? Afinal, ela não tinha de reforçar que o homem morrera, porque todos os outros já sabiam.

     Lá no alto, o Grande Sacerdote falava em várias línguas. Primeiro a Língua Runarial – a que todos os povos falavam – e depois as línguas antigas de cada um. Falou em élfico com sons semelhantes aos dos passarinhos, ecos numa gruta para os anões e feitiços murmurados para os feiticeiros, para ela.

     Ela ouvia vagamente, mas estava mais concentrada em parecer interessada do que interessada na realidade. No interior escondido da sua mente, pensava no pai e no seu reino. Será que ela lhes pertencia? Não, de certeza. Se pudesse, se tivesse a oportunidade, fugiria e criaria algo seu. Os olhos brilharam-lhe de desejo: sim, se houvesse oportunidade, ela agarrá-la-ia.

     O círculo de fogo tornou-se, num clarão verde, mas nem assim ela deixou de olhar para o Grande Sacerdote. Oscilou entre o azul e o lilás, mas seus olhos estavam presos no velho profeta. Nem quando as chamas se ergueram, lentamente, para encerrar a cerimônia e consumir o corpo, Sinevra desfitou o condutor.

     A Rainha Viúva chorava copiosamente, com o lábio preso pelos dentes, torcendo os pulsos finos, enquanto o Grande Sacerdote se preparava para fechar a fúnebre solenidade – e, depois, calou-se.

     Ouviam-se murmúrios alarmados a sua volta – mas por quê? Arriscou um olhar no caixão: ele ainda estava lá, o corpo também, e as chamas tinham regressado ao seu tamanho original. Os olhos cegos do Profeta moveram-se em todas as direções, procurando algo às apalpadelas. Agarrou firmemente o pulso da Rainha e puxou-a para a sua boca. Sinevra percebeu que estava a falar, mas era impossível ouvir. Eles, lá em baixo, aguardavam nervosos. Então, o Profeta falou, o rosto contorcido pela dor:

     - Desgraça - murmurou baixinho, mas toda a gente ouviu. Sinevra sentiu-se imersa num mar de confusão, livre para olhar finalmente à sua volta, para os rostos afogueados e as instruções apressadas. O que é que poderia ser tão horrível nas palavras do Profeta?

     Oh, sim, ele acabara de prever a desgraça – mas, isso não queria dizer que algo fosse mudar? Alguém a atirou para trás, mas nem o impacto a fez despegar-se do súbito e irracional temor que lhe comprimia o peito. O que é que ela faria?

     Algures no meio da multidão, um jovem humano de longos cabelos morenos desembainhou uma espada. À luz do Sol, parecia feita de ouro maciço. Então o rosto do rapaz contorceu-se num sorriso certo, numa garantia, apenas abalada por um momento quando olhou para o rosto do pai, morto no meio do seu círculo de chamas.

     - Os membros do conselho – houve um silêncio imediato quando, livre da sua dor e sofrimento, a Rainha falou, com um sentido de urgência que Sinevra desconhecia. – Juntem-se no Salão. Agora.

     Num aglomerado confuso, uma parte das pessoas separou-se do grupo em uníssono, todos com um ar preocupado mas sensato, deixando para trás centenas de outros rostos amedrontados. Sinevra os seguiu, porque sabia o que tinha de fazer.

     Mas, no derradeiro instante, ainda olhou para trás, onde o Antigo Rei jazia, esquecido, sem chamas que o protegessem.


Confira o CAPÍTULO II (parte I).

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Autor: Bianca Janeiro.
Adaptação:
Revisão: Isie Fernandes. 
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PRÓLOGO


     O lendário espelho Rorrim. Um espelho antigo, de beleza e proporções únicas, em que fora esculpido todo o mapa de Runária. Um artefato raro e valioso que mostrava a biografia do próprio mundo em si, desde a divisão inicial das raças até o agrupamento de todas elas.

      Histórias e mais histórias poderiam ser contadas sobre a sua criação e a conseqüente formação do Conselho Superior da Terra das Runas, órgão responsável pela sua guarda; mas essas histórias não eram importantes, não naquele momento. O que de fato importava era o que Rorrim revelava: inquietação, angústia e sofrimento. Tudo refletido na imagem desolada da mulher que o admirava pela última vez.

     A figura de um homem também era perceptível, e o seu pesar, evidente. Sua armadura brilhante, alheia às coisas mundanas, contrastava com o ar fúnebre do ambiente. Com alguma dificuldade, o guerreiro sussurrou:

     – Vossa Majestade, já está na hora de partirmos.

     A mulher suspirou, acordando de um sonho distante onde o seu marido ainda estava vivo.

     – Só mais um minuto, Julius – disse ela e voltou-se para o espelho. – Só mais um minutinho.

     O guerreiro ficou em silêncio, era o bastante. Tinha certeza de que a rainha conhecia suas obrigações.

     – Ah, e só mais uma coisa – acrescentou ela, ajeitando seu longo vestido. – Quantas vezes eu já MANDEI você me chamar de Estella?

     – Contando com essa? – raciocinou o guerreiro. – Três mil, quatrocentos e vinte e uma, Vossa Maj... quero dizer, Estella.

     A mulher esboçou um leve sorriu, apesar de ainda estar triste. Conversar com Julius era a única coisa que a mantinha firme naqueles dias difíceis.

     – Vamos – falou a rainha Estella, depois de memorizar o mapa de Runária. – É chegada a hora de enterrar o Rei Superior.

     – Certo, avisarei o mestre de cerimônias – e Julius, com uma reverência, retirou-se dos aposentos reais.



Confira o CAPÍTULO I.


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Autor: Thiago Neves.
Adaptação:
Revisão: Isie Fernandes. 
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