CAPÍTULO I


     O Sol punha-se devagar por detrás das colinas do pequeno reino dos Feiticeiros, como se hesitasse em partir. Aborrecida, a princesa Sinevra protestava.

     - Mas por quê? – teimou, fitando os olhos decididos e teimosos do pai – Por que eu? Eu não tenho um lugar no Conselho, tu tens. Não me vão querer ver lá. E eu não quero ir.

     O rei Quimodo suspirou, fazendo tremer a barba grisalha com impaciência.

     - Assinevrad… - murmurou, passando a mão pelo rosto dela. A filha afastou-a.

     - É Sinevra – sibilou, virando-lhe as costas.

     - Sabes, foi prometido que na altura em que completasses trezentas luas tomarias o meu lugar no Conselho como representante dos feiticeiros e da Runa da Esperteza – Sinevra bufou e virou-lhe as costas, mas Quimodo elevou a voz: – Nós precisamos de ti, Sinevra! Foi prometido!

     - E de que é que serve ser Rei se não se podes quebrar as regras? Tens poder para isso, aliás, sabes que não estou pronta para participar no Conselho.

     - Está na altura de começares a mudar a imagem que fazem de ti… – resmungou Quimodo. A filha elevou a voz, furiosa:

     - Oh, sim, novamente o mesmo assunto - e andou de um lado ao outro, como fazia o próprio pai ao reclamar-lhe. - Comporta-te, estuda, sê inteligente, sê como os teus pais… Não quero ser como vocês! Sabes o que quer dizer esperteza? E sabes que não quer dizer o mesmo que sabedoria? Pois, adivinha, a nossa runa confere-nos esperteza, agilidade de mente. Não o poder de decorar feitiços e datas! Que se dane a história, nós podemos criar história! Sabes o que é que é sentir que tenho de ser como os meus pais?

     - E sabes o que é que é ouvir a toda a hora que a minha filha é… Uma meretriz!?

     - E o que é que interessa? Porque é que não fazes orelhas mocas?!

     - É a grande meretriz aqui, a grande meretriz ali… Até eu acredito!

     Sinevra abriu a boca em protesto, mas faltou-lhe o ar. Ele chamara-lhe o quê?

     - O atual rei morreu. Vais à reunião e pronto. Já está na altura de assumires alguma responsabilidade.

     Quimodo virou-lhe as costas, com as mãos a tremer num reflexo de raiva habitual. Mas nada tremia mais do que Sinevra, furiosa, ofendida e abandonada.

§§§

     Com um salto perigoso, Sinevra sentiu-se atirada de encontro aos painéis de madeira da carruagem. Torcia ligeiramente as mãos porque, agora que deixara o pai para trás, sabia que nada a podia salvar. E o que é que ela podia fazer? Era um funeral, e ela nunca comparecera em nenhum. Diziam-na demasiado alegre para um funeral. E, agora, teria de ir a um grande e importante, com cuidados redobrados para não ofender ninguém. Ia lá estar Estella, a Rainha humana, a presidir as cerimônias, apenas atrás do Grande Sacerdote.

     - Dizem que ele tem os olhos leitosos como os de um morto… - sussurrou Ymèrria, dama de companhia da princesa, a sua pele escura esbranquiçada pelo medo.

     - É cego? – alguma coisa neste aspecto a tranquilizava. Pelo menos, o último dos Grandes Sacerdotes de Runária, com o inegável dom da visão, não a podia ver. Apenas ao futuro, e o futuro não a atormentava tanto como o presente.

     Ymèrria acenou solenemente, como se toda a questão fosse demasiado importante para estar ao seu alcance.

     - Isso não é um pouco… Usado? – a pergunta acerca do vestido da princesa escapou-lhe dos lábios sem intenção. Mèrr fitou-a de olhos arregalados.

     - Bem… Sim, talvez… Eu acho que sim – sussurrou a voz a desaparecer-lhe na garganta. Até Sinevra sabia que tinha ido longe demais. Portanto, manteve-se calada, pensando e repensando a sua entrada e a sua postura. Teria de conter comentários impróprios, sufocar gargalhadas e olhar em frente, para o caixão do acabado, para o próprio rosto do morto. Nada de fixar os estranhos, nada de sorrir a caras novas. Teria de estar séria, infeliz, e, se conseguisse, a chorar. Levemente, como se lamentasse por Runária – porque, afinal de contas, ela não conhecia o homem. E teria de se lembrar solenemente de não dizer isto a ninguém.

§§§

     Era noite cerrada quando chegaram ao Palácio Superior onde o antigo Rei Superior tinha morrido. Sinevra nunca entrara no Reino dominado pelos Homens, e admirou a sua decoração sombria e imponente. Parecia afirmar claramente que os seus súditos tinham de ter respeito ou morreriam – só um povo tão indisciplinado para precisar de um aviso como aquele castelo largo, a pedra negra a conferir-lhe um tom ameaçador.

     Quando penetraram as portas, Sinevra pôde, pela última vez enquanto ali estivesse, olhar em volta com curiosidade. As sebes tinham sido aparadas e tudo estava coberto de veludo preto, a cor de luto dos homens. A repousar no seu caixão de cristal, estava o Antigo Rei Supremo, um leve sorriso de batalha nos lábios, selvagem e mortífero. Em volta da mesa de pedra, havia um grande círculo de fogo, que impedia qualquer mal de entrar no morto e de corrompê-lo. Puro e justo até ao fim, diziam as inscrições na base da mesa.

     Sinevra foi recebida com pompa no salão, onde aqueles que já tinham chegado comiam. Não havia sinais da Rainha Viúva.

     - Princesa Assinevrad, representante dos Feiticeiros – anunciou o arauto. Todos os rostos se voltaram para contemplá-la, alguns até hostis, cheios de despeito. Quem escolhera aquela rapariga para comparecer ao funeral?

     Criada na rigidez e na astúcia, Sinevra ergueu a cabeça e caminhou até ao seu lugar, sentando-se em silêncio e servindo-se. Quando todos os olhares se desviaram dela, debicou a comida e saiu nervosa.

     Era já no dia seguinte. A prova mais difícil por que tinha passado – e os implacáveis juízes eram, infelizmente, toda Runária.

§§§

     - O conselho é à tarde – papagueava Mèrr. Sinevra não conseguia calá-la. – E, portanto, pensei em verde. Afinal, é melhor do que preto para um conselho, e é a cor do luto.

     - Não aqui – frisou a princesa, frustrada, afastando o cetim cor de jade. – Aqui, é preto. E preto será.

     Mèrr fitou o vestido preto, enjoada, mas Sinevra não cedeu. Afinal, o que queria aquela tontinha que ela fizesse? Ofendesse toda a Runária e arruinasse a sua reputação, já bastante má, por um capricho? Seria, sem dúvida, algo de Sinevra – mas não desta vez. Queriam-na dura, séria e infeliz? Pois ela seria ainda mais dura, ainda mais séria e ainda mais infeliz.

     No pátio da frente, a Rainha Viúva, acompanhada pelo Grande Sacerdote, de olhos baços, olhava para todos eles com um sorriso leve, muito triste. Sinevra quase que sentiu pena dela. Todas as criaturas reuniam-se em volta do circulo de fogo, mesmo aqueles que não estavam representados no Conselho, e o povo estava atrás, afastado, uma mancha negra contra o negro.

     Tomando o seu lugar, Sinevra fitou o rosto do morto. Via facilmente que estava morto, não só por estar num caixão – e anunciadamente morto –, mas devido ao seu aspecto macilento e cansado, que nenhum Rei Supremo alguma vez poderia ter em vida. Alguém lhe deu uma cotovelada nas costas.

     - Olhos lá em cima – murmurou um elfo de orelhas bicudas. Sorriu levemente, encoberto pela cortina negra dos cabelos da princesa.

     - Mas eu pensei… - sussurrou ela, confusa.

     - Costumes humanos – esclareceu o elfo. Fez um aceno hirto. Não podia teimar nos seus costumes. Olhos no Grande Sacerdote, certo? Afinal, ela não tinha de reforçar que o homem morrera, porque todos os outros já sabiam.

     Lá no alto, o Grande Sacerdote falava em várias línguas. Primeiro a Língua Runarial – a que todos os povos falavam – e depois as línguas antigas de cada um. Falou em élfico com sons semelhantes aos dos passarinhos, ecos numa gruta para os anões e feitiços murmurados para os feiticeiros, para ela.

     Ela ouvia vagamente, mas estava mais concentrada em parecer interessada do que interessada na realidade. No interior escondido da sua mente, pensava no pai e no seu reino. Será que ela lhes pertencia? Não, de certeza. Se pudesse, se tivesse a oportunidade, fugiria e criaria algo seu. Os olhos brilharam-lhe de desejo: sim, se houvesse oportunidade, ela agarrá-la-ia.

     O círculo de fogo tornou-se, num clarão verde, mas nem assim ela deixou de olhar para o Grande Sacerdote. Oscilou entre o azul e o lilás, mas seus olhos estavam presos no velho profeta. Nem quando as chamas se ergueram, lentamente, para encerrar a cerimônia e consumir o corpo, Sinevra desfitou o condutor.

     A Rainha Viúva chorava copiosamente, com o lábio preso pelos dentes, torcendo os pulsos finos, enquanto o Grande Sacerdote se preparava para fechar a fúnebre solenidade – e, depois, calou-se.

     Ouviam-se murmúrios alarmados a sua volta – mas por quê? Arriscou um olhar no caixão: ele ainda estava lá, o corpo também, e as chamas tinham regressado ao seu tamanho original. Os olhos cegos do Profeta moveram-se em todas as direções, procurando algo às apalpadelas. Agarrou firmemente o pulso da Rainha e puxou-a para a sua boca. Sinevra percebeu que estava a falar, mas era impossível ouvir. Eles, lá em baixo, aguardavam nervosos. Então, o Profeta falou, o rosto contorcido pela dor:

     - Desgraça - murmurou baixinho, mas toda a gente ouviu. Sinevra sentiu-se imersa num mar de confusão, livre para olhar finalmente à sua volta, para os rostos afogueados e as instruções apressadas. O que é que poderia ser tão horrível nas palavras do Profeta?

     Oh, sim, ele acabara de prever a desgraça – mas, isso não queria dizer que algo fosse mudar? Alguém a atirou para trás, mas nem o impacto a fez despegar-se do súbito e irracional temor que lhe comprimia o peito. O que é que ela faria?

     Algures no meio da multidão, um jovem humano de longos cabelos morenos desembainhou uma espada. À luz do Sol, parecia feita de ouro maciço. Então o rosto do rapaz contorceu-se num sorriso certo, numa garantia, apenas abalada por um momento quando olhou para o rosto do pai, morto no meio do seu círculo de chamas.

     - Os membros do conselho – houve um silêncio imediato quando, livre da sua dor e sofrimento, a Rainha falou, com um sentido de urgência que Sinevra desconhecia. – Juntem-se no Salão. Agora.

     Num aglomerado confuso, uma parte das pessoas separou-se do grupo em uníssono, todos com um ar preocupado mas sensato, deixando para trás centenas de outros rostos amedrontados. Sinevra os seguiu, porque sabia o que tinha de fazer.

     Mas, no derradeiro instante, ainda olhou para trás, onde o Antigo Rei jazia, esquecido, sem chamas que o protegessem.


Confira o CAPÍTULO II (parte I).

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Autor: Bianca Janeiro.
Adaptação:
Revisão: Isie Fernandes. 
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